domingo, 26 de abril de 2015

sobre a nossa caverna


"Lovely one, tocou sem querer a canção do Tim com a Gal. Mil novecentos e tal. Lembrei do teu rosto ferido pela faca de um verão ininterrupto, mais de oitocentas falhas atlânticas ameaçando-nos a idade e ameaçando as divisão concreta das estradas nacionais, ameaçando as grades decisivas do salão de jogos da madrugada, ameaçando os enormes porteiros do século XXI. Tocou a tal canção, foi no salão entre dois golpes, o canto veio do nada e por causa disso eu também lembrei do cavaquinho de doze cordas ofendendo a hora de ponta do metropolitano e alimentando assim a posição arqueada de nossas sobrancelhas - que beleza nossa surpresa, nosso amor tão visível no rosto e nas esferas metálicas da cidade. Éramos o duplo físico da cidade. Tudo tanto sem sentido como um dia de domingo. Olha, espera, mudou. Agora veio o Dominguinhos em pandilha com a Elba, que jukebox dos infernos, é bom ficar com você vezinquando é o caralho, passou tempo demais e desde o grande desastre é assim: a todo mundo eu dou psiu porque eu tenho o coração meio vazio e nem o sabiá sentado em meu ombro remete para aquele espaço cavernoso onde tudo brilhava, onde se refletiam as conversas de Marselha, onde descansavam os jogadores de xadrez, onde sempre eram reveladas as receitas do velho bolo de fubá. Fomos tão alegres na caverna. Deixa que te diga que agora é tudo diferente, há mentiras profundas pairando sobre as costas de um eterno tigre, há perguntas muito acostumadas com o silêncio. Há desvios para a revolução mas a revolução não chega nem que o bicho tussa, há frades monásticos mascando chiclete na estação e perguntando pelo último fascículo da cartilha diplomática, há porteiros espirrando por causa da enxurrada de gasolina que inundou nossas ruas e nossos extractos bancários, quase tacavam fogo nos bancos mas depois não. Há lugares onde as pessoas vão morrer e ninguém quase ninguém lhes deita a benção. Está cantando a Bethânia agora. Neste lugar há gente com febre muito alta e mais ninguém pergunta por ti. Tudo povo esperto. Oi. Às vezes eu lembro de você, passaram tantos anos e isto foi tudo uma estúpida pirueta, minha cara no jornal, tua cara na escultura, queria dizer-lhes que foi tudo por causa de uma frase dita às três horas da madrugada num automóvel estacionado na frente da associação de jovens tenistas, nessa época o preto norte-americano ainda estava vivo, tu disseste sim e eu disse sim, formou-se a caverna mais bonita do mundo e mal de nós que não soubemos escavar-lhe janelas, éramos tão jovens amor, não há que pedir perdão, te escrevo entre um voo e outro, aposto que não sabes que nalgumas horas até os aeroportos se enchem de silêncio, o silêncio é o velho profeta que me persegue de soqueira na mão e me acha distraída, faz o que quer comigo portanto eu fujo dele, tantos anos de cara arrebentada me deram mais de doze pontos então agora posso viajar de graça, onde andarás em que bar em que cinema, full stop. Veio um cheiro de caverna. Alguém me fez uma pergunta e mais uma vez eu fintei a parada. Queria tanto falar da cor mutante de teus olhos, das praias rochosas alentejanas onde descobrimos a plasticidade perfeita da natureza, venha Richter, venha Rothko, venha Miquel, o sopro natural é que forma tudo. Queria dizer-lhes que foi o maior amor de nossa rua, que fugimos de nós como o louco foge da metáfora perfeita de Tarkovsky, que provavelmente conseguimos e que portanto disfrutem. Dos poemas, dos desenhos, das canções na flauta, das entrevistas no rádio, dos retratos de camisa azul ou de vestido longo, dos mantras aprendidos a partir das cabeças dos índios despidos. Éramos perfeitamente europeus e agora não somos mais. No outro dia, por telefone, te disse que casa da gente a gente acha. Queria contar-te da terceira montanha que trepei e da bandeirinha vermelha e branca que cravei em mim por causa disso, mas não disse nada. Foste tu quem me ensinou que não se crava nada no corpo do mundo, só no corpo da gente. Estou cravando um monte de coisas estúpidas na pele da terra, e por causa disso eu não penso mais em você. Dizem que você agora é um humano mais do que dotado de beleza e brilho. Eu, por acaso, já sabia disso. Só faço por esquecer disso a cada cinco minutos, por entre fotos e nomes, entre um aeroporto e outro, entre um restaurante e outro, entre um castiçal de prata e outro. It's a matter of self protection, amor, sempre te disse isso. Tua presença física e espiritual, enigmática, doce, brilhante, enche por demais o friso cronológico de meu tempo destinado. Então eu desisti, então eu fico colocando moedinhas constantes e compassadas na jukebox. Sorte a minha, acabou a lista tribal. Está tocando o Tom Waits, closing time, e como de costume I Hope That I Don't Fall In Love With You. Beijo, durma bem, coma bem, ame direito, se esconda, fique aí, cada um em sua montanha e essa é que é a fatalidade mentirosa mais justa de todas. Ah, amor, tua cara, teu cabelo claro, teu corpo quando teu corpo entra na fila do metropolitano. Escavaremos as janelas, deixaremos de herança ao mundo uma belíssima caverna. Você precisa saber da piscina & etc, mas baby, eu sei que é assim. Alguém espirrou, saúde. Sleep tight, you, don't let 'em bite."


(Matilde Campilho)

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