quinta-feira, 27 de maio de 2010

amargo abril

"Há alguns dias, Deus — ou isso que chamamos assim, tão descuidadamente, de Deus —, enviou-me certo presente ambíguo: uma possibilidade de amor. Ou disso que chamamos, também com descuido e alguma pressa, de amor. E você sabe a que me refiro. 

Antes que pudesse me assustar e, depois do susto, hesitar entre ir ou não ir, querer ou não querer — eu já estava lá dentro. E estar dentro daquilo era bom. Não me entenda mal — não aconteceu qualquer intimidade dessas que você certamente imagina. Na verdade, não aconteceu quase nada. Dois ou três almoços, uns silêncios. Fragmentos disso que chamamos, com aquele mesmo descuido, de "minha vida". Outros fragmentos, daquela "outra vida". De repente cruzadas ali, por puro mistério, sobre as toalhas brancas e os copos de vinho ou água, entre casquinhas de pão e cinzeiros cheios que os garçons rapidamente esvaziavam para que nos sentíssemos limpos. E nos sentíamos. 

Por trás do que acontecia, eu redescobria magias sem susto algum. E de repente me sentia protegido, você sabe como: a vida toda, esses pedacinhos desconexos, se armavam de outro jeito, fazendo sentido. Nada de mal me aconteceria, tinha certeza, enquanto estivesse dentro do campo magnético daquela outra pessoa. Os olhos da outra pessoa me olhavam e me reconheciam como outra pessoa, e suavemente faziam perguntas, investigavam terrenos: ah você não come açúcar, ah você não bebe uísque, ah você é do signo de Libra. Traçando esboços, os dois. Tateando traços difusos, vagas promessas. 

Nunca mais sair do centro daquele espaço para as duras ruas anônimas. Nunca mais sair daquele colo quente que é ter uma face para outra pessoa que também tem uma face para você, no meio da tralha desimportante e sem rosto de cada dia atravancando o coração. Mas no quarto, quinto dia, um trecho obsessivo do conto de Clarice Lispector "Tentação" na cabeça estonteada de encanto: "Mas ambos estavam comprometidos. Ele, com sua natureza aprisionada. Ela, com sua infância impossível". Cito de memória, não sei se correto. Fala no encontro de uma menina ruiva, sentada num degrau às três da tarde, com um cão basset também ruivo, que passa acorrentado. Ele pára. Os dois se olham. Cintilam, prometidos. A dona o puxa. Ele se vai. E nada acontece. 

De mais a mais, eu não queria. Seria preciso forjar climas, insinuar convites, servir vinhos, acender velas, fazer caras. Para talvez ouvir não. A não ser que soprasse tanto vento que velejasse por si. Não velejou. Além disso, sem perceber, eu estava dentro da aprendizagem solitária do não-pedir. Só compreendi dias depois, quando um amigo me falou — descuidado, também — em pequenas epifanias. Miudinhas, quase pífias revelações de Deus feito jóias encravadas no dia-a-dia. 

Era isso — aquela outra vida, inesperadamente misturada à minha, olhando a minha opaca vida com os mesmos olhos atentos com que eu a olhava: uma pequena epifania. Em seguida vieram o tempo, a distância, a poeira soprando. Mas eu trouxe de lá a memória de qualquer coisa macia que tem me alimentado nestes dias seguintes de ausência e fome. Sobretudo à noite, aos domingos. Recuperei um jeito de fumar olhando para trás das janelas, vendo o que ninguém veria. 

Atrás das janelas, retomo esse momento de mel e sangue que Deus colocou tão rápido, e com tanta delicadeza, frente aos meus olhos há tanto tempo incapazes de ver: uma possibilidade de amor. Curvo a cabeça, agradecido. E se estendo a mão, no meio da poeira de dentro de mim, posso tocar também em outra coisa. Essa pequena epifania. Com corpo e face. Que reponho devagar, traço a traço, quando estou só e tenho medo. Sorrio, então. E quase paro de sentir fome."

Dois ou três almoços, uns silêncios - Fragmentos disso que chamamos de "minha vida". 
Caio Fernando Abreu

pensamento aleatório e sem poesia

>drinking champanhe by myself
Ando incentivando as pessoas a beberem champanhe sozinhas. Não que eu esteja levantando uma bandeira em prol da solidão. Não, não e não. Só acho que a gente não precisa depender de outros pra fazer as coisas boas da vida.

Tim tim!

sexta-feira, 21 de maio de 2010

trocadilho de filme

temo
te(a)mo

grito da montanha

é tempo de hipocrisia
de sujeira debaixo dos panos
de solidariedade no câncer


é tempo de absoluta mineirice.
(e, nesse tempo, não me encontro mais.)

quinta-feira, 20 de maio de 2010

sexta-feira, 14 de maio de 2010

quinta-feira, 13 de maio de 2010

trabalho solo

a escolha de estar sozinha no palco é assumida aos poucos. cada dia é um novo teste. já não cabem outros para esse instante essencial - os outros terão que ser vozes de uma única voz: a voz-guia.
a voz deve ser assumida. o corpo deve ser assumido. arte e vida já não são distintas.

começa-se aprendendo a fazer teatro. ao longo dos anos, é preciso aprender a não fazê-lo.

terça-feira, 11 de maio de 2010

hoje

fragmento amoroso três

nosso amor foi feito pra percorrer distâncias - te quero longe

fragmento amoroso dois

falta aprender a mentir

fragmento amoroso um

talvez eles preferissem o nosso silêncio

domingo, 9 de maio de 2010

quinta-feira, 6 de maio de 2010

bolhas

Ganhou uma garrafa de champanhe de presente de aniversário. Guardou com cuidado dentro do armário velho. "É pra tomar um dia, com alguém especial." Deixou passar um mês. Nesse mês passaram-se coisas. Amigos, promessas de amigos, amores, promessas de amores. Era ela quem abria e fechava a porta, todos os dias. Depois de um dia de trabalho intenso, chegou em casa querendo usufruir do presente. O dia estava como todos os outros, nada em especial. Sem pensar muito, abriu o armário, pegou o presente, bebeu feliz. A melhor companhia pra tomar uma garrafa de champanhe era ela mesma.


= parafraseando levemente meu amigo que ganhou uma latinha de refrigerante jesus.

domingo, 2 de maio de 2010

sempre ele

lógica atual dos afetos

É demasiadamente estranho, demasiadamente triste, que depois do sim, depois do não, depois do quase, reste apenas um silêncio espesso. Um silêncio duro. Um silêncio autoritário. É demasiadamente difícil aceitar que os encontros sejam tão descartáveis a ponto de desaparecerem como se nunca tivessem existido e que, assim, obriguem-nos, como manda a conduta vigente, a também silenciar.