"Primeiro olho, depois boca e então um cheiro reconhecido. Tudo chegou com muitos requintes de afeto até que de fato se descobrissem. E aí viram que o certo era mesmo seguirem assim se encostando, planejando o que viria e até temendo em dupla tudo aquilo que poderia não acontecer por causa dos tropeços dos quais ninguém consegue escapar. Seria quase crime tentar colocar entre vírgulas e pingos vis essa coisa costurada de casal, por isso conto só que os dois foram invadidos de pecado. Um bom pecado, uma certa gula de vida que às vezes faz o mundo andar alguns passos.
Por ali foram anos a fio criando vocabulário e olhar em comum. Tempos e tempos e ele lúcido de um jeito bom, em diligente mas prazerosa tarefa de criar espaço seu no tempo. Ela, de tão atravessada por aquele homem e saciada de beleza e sonho, ganhando perigosas feições de mocinha da história. Viveu vida que não era dela, descuidou de si e adiou providências que não perdoam ser adiadas. Arrefeceu em câmera lenta, esperando de tocaia o dia em que ele precisaria falar doído.
O dia chegou e ela ensurdeceu pra não morrer. Não ouviu mala se fechar nem porta ser trancada - submergiu em água salgada e estancou.
Foi muito devagar que voltou a perceber alguns poucos sons e só anos depois desafogou de vez o corpo inteiro. Com a alma enxarcada de um jeito irremediável, mocinha agora andava toda amparada por toalhas e dava pulinhos de susto quando se lembrava que não tinha aprendido a cavar mundo com palavras próprias.
Se alguém inventasse pra ela um destino, era capaz de espalhar com gramofone a novidade por ruas inteiras da cidade. Acontece que o destino de encomenda nunca chegou e aí não houve mapa ou bússola que ajudasse mocinha a desenhar um rumo modesto qualquer. Sozinha, é assim sem eira nem beira - e nem rastro de caminho vislumbra pela fresta da janela.
Mas respira fundo e deixa passar"
maria lutterbach