sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

o caminho até o poema

olhou pros pés, ela usava sapatos. eles já não lhe caíam tão bem nos pés. o chão agora deveria ser firme, mas, no entanto, ela tinha começado a flutuar. estava de frente do homem da sua vida. ele não a deixava partir. olhou pro homem e não sabia o que dizer. sempre que ela o olhava era assim: a fala tremia e ela nada dizia, e quanto mais queria dizer mais ficava muda, quase oca de tanto silêncio. o fato é que provavelmente nenhuma palavra conseguiria dar conta do recado. "que meu amor seja todo silêncio", ela pensava. ou "quanto mais amo, mais calo." ele percebia o incômodo do momento e, quase de propósito, não ousava pronunciar nenhum som. ela ficava muda e ele não tossia, nem piscava. aquele homem tinha a terrível capacidade de reafirmar o silêncio."pra que falar se não há nada pra se dizer?", ele pensava. já pra ela, a ausência de palavras era sinal de desencontro:  "eu falo por sentimentos, enquanto você fala por palavras." 
olhou pros pés novamente. ela sentia que eles estavam um pouco maiores do que no ano passado. maiores e perdidos, os pés tinham desaprendido o caminho até o poema. um poema se faz nas horas de desatenção, entre uma espiada no relógio ou um telefonema qualquer."pois assim também haveria de ser o amor" - ela pensou. "o amor não pode ocorrer quando ainda se calculam frases. talvez o amor só exista quando o silêncio deixa de ser um incômodo."
olhou pros pés mais uma vez. eles realmente tinham desaprendido o caminho. aquele homem não conseguia perceber urgência da situação. pior do que fazer do silêncio um incômodo, é querer gritar quando se está calada.
um poema se faz nas horas de desatenção e ela sabia que precisava permitir-se vagar. sem pensar muito, fechou os olhos que viam o homem. apontou os pés pra uma direção qualquer. titubeou. deu um passo. ele tentou dizer alguma coisa, ela não ouviu. nem percebeu.

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